Trecho de livro

1.461 Dias na Trincheira

Editor de Política da Folha de S.Paulo, Eduardo Scolese traduz em livro o caos do governo Bolsonaro pelo olhar de um dos grupos mais atacados pelo ex-presidente: a imprensa

Leonardo Neiva 03 de Outubro de 2025

Ainda em meio aos desdobramentos da condenação de Jair Bolsonaro por participar de uma tentativa de golpe de Estado, não há momento mais oportuno do que este para relembrar a caótica passagem do ex-presidente pelo Palácio do Planalto. É o que o jornalista e editor de Política da Folha de S.Paulo, Eduardo Scolese, faz em “1461 Dias na Trincheira” (Autêntica, 2025), um relato dos quatro anos de cobertura do mandato da Bolsonaro pela ótica de um dos grupos mais atacados por seu governo: a imprensa.

“No que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal. Por si só esse jornal se acabou”, declarou o então presidente no dia seguinte à sua eleição. Scolese cita o caso como uma espécie de prefácio para os anos turbulentos que viriam pela frente em Brasília e na Redação de um dos maiores jornais do país.

O ápice desse período, que levou diversos jornalistas à exaustão, foram os anos iniciais da pandemia, uma tempestade perfeita que reuniu o caos nas equipes de imprensa, recordes diários de mortes em decorrência da covid, o invariável negacionismo do presidente e cortes salariais em várias redações, incluindo a Folha.

Além do significado central do período para os rumos do país, a obra nos lembra da importância que o momento histórico teve para a imprensa brasileira, seja na cobertura jornalística ou na própria movimentação interna dos jornais: “A mobilização que veio a seguir criaria um novo paradigma na relação entre Redação e comando da empresa sobre condições salariais e de trabalho”, escreve Scolese.


O meado de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, apresentou de forma cabal aos jornalistas o caos que seria lidar com esse presidente. Repórteres e editores eram martelados diariamente com novas crises, ataques e declarações ofensivas, por vezes distorcidas e mentirosas, e mal tinham tempo para digeri-las. Era preciso ouvir, entender e interpretar tudo aquilo rapidamente antes de entregá-lo já filtrado ao leitor. Isso nos consumia demais.

Em um intervalo de dez dias em julho de 2019, por exemplo, como escreveu a Folha, Bolsonaro acumulou declarações recheadas de conteúdo falso, sarcástico e preconceituoso. Naquele curto período, tome fôlego, ele: mentiu ao dizer que a jornalista Míriam Leitão não havia sido torturada enquanto presa pela ditadura militar, foi preconceituoso com os nordestinos ao se referir a eles com o termo “paraíba”, negou que existisse fome no Brasil, duvidou dos dados de desmatamento divulgados pelo renomado órgão federal Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), disse que o tema da preocupação ambiental era coisa de “veganos que só comem vegetais” e ainda zombou do desaparecimento durante a ditadura do pai do então presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz. Tudo isso em dez dias apenas.

Aquele período da metade do primeiro ano de governo também apresentou um presidente mergulhado em uma mistura de atos e agendas de tom populista, com ataques a instituições, uso do tom violento e busca de apoio a um movimento de massa. Enquanto radicalizava nas declarações sem um motivo aparente, ele surpreendia os próprios assessores e seguranças com decisões abruptas como a de ir a jogos de futebol e fazer passeios em locais públicos. “Bolsonaro saiu do Alvorada. Não sabemos para onde. Estamos seguindo.” Essa mensagem da equipe de Brasília para a chefia de São Paulo se tornava cada vez mais comum, em especial nos finais de semana. Estar de plantão aos sábados e domingos era motivo de angústia antecipada. Bolsonaro aprontaria alguma coisa, com certeza, mas ninguém sabia o quê. Era preciso tanto uma vigília atenta em frente ao Alvorada como um carro preparado para sair no encalço do presidente.

Repórteres e editores eram martelados diariamente com novas crises, ataques e declarações ofensivas, por vezes distorcidas e mentirosas, e mal tinham tempo para digeri-las

O dia 22 de junho, um sábado, foi uma verdadeira aula prática. Bolsonaro deixou o Alvorada pouco depois das 9 horas com destino desconhecido para a imprensa. Quando é assim, equipes de jornais, portais, rádios e TVs posicionadas em frente ao palácio correm para seus carros e saem em perseguição ao comboio do presidente. Nem sempre é possível segui-lo de perto, já que a escolta com carros e motos muitas vezes segura o fluxo e ganha distância. O jeito é também ficar de olho nas redes sociais do presidente para saber onde será a próxima entrada ao vivo, quase sempre pelo Facebook. Naquele dia, Bolsonaro primeiro fez exames de rotina e depois seguiu para um acanhado supermercado no setor Sudoeste de Brasília, área nobre da capital federal, onde cumprimentou clientes e funcionários e comprou xampu. De lá, passou por um clube com quadras de futebol society, onde bateu bola com alguns dos presentes, visitou o Clube do Exército e um outro ligado à Aeronáutica.

[22/06/2019 13:15:24] Eduardo Scolese: Estamos diante de um novo Getúlio
[22/06/2019 13:15:27] Eduardo Scolese: Novo Lula
[22/06/2019 13:15:37] Eduardo Scolese: Precisamos escrever sobre isso
[22/06/2019 13:15:40] Eduardo Scolese: Populismo

Eu estava de plantão. Recebi, editei e publiquei todas essas informações. Enquanto atuava nisso, trocava mensagens com Leandro Colon, o diretor da Folha em Brasília. Escrevi as mensagens acima para ele. A reportagem sugerida foi produzida semanas depois. Ao final dela há o relato de um ministro que, em tom de desabafo, disse à Folha que, apesar dos esforços da equipe presidencial, não havia jeito: Bolsonaro era “incontrolável”.

Naquele dia, a Folha havia destacado em sua edição impressa uma reportagem sobre um novo estilo que Bolsonaro buscava adotar ao se aproximar de seis meses de governo. Em resumo, o texto apontava para um presidente mais solto no cargo, após ter promovido mudanças no primeiro escalão em busca de uma nova maneira de governar e deixar para trás a até então difícil relação com o Congresso, palco de seguidas derrotas para o governo. Manifestações de rua recentes a seu favor tinham deixado Bolsonaro de bom humor naqueles dias. Aparecia mais em público, mostrava-se menos oscilante e mais descontraído diante de apoiadores e falava mais com a imprensa. A mesma reportagem, de 22 de junho, fez uma ponderação: “Apesar de uma melhora de clima, assessores presidenciais não acreditam que ele vá adotar de forma constante uma versão ‘paz e amor'”.

Não havia mais nenhuma ilusão sobre um Bolsonaro controlável, tutelável ou coisa parecida

Dito e feito. Naquele sábado de passeio por Brasília, ao parar para falar com os jornalistas, Bolsonaro partiu para cima do Congresso em suas declarações. Disse que o Legislativo passava a ter cada vez mais “superpoderes” com o objetivo de deixá-lo como uma espécie de “rainha da Inglaterra”, ou seja, que reina mas não governa. “Pô, querem me deixar como rainha da Inglaterra? Este é o caminho certo?” A bronca do presidente ganhou as manchetes no final da manhã daquele sábado e, de novo, tinha como pano de fundo uma afirmação enviesada de Bolsonaro. O eixo da gritaria dele era sobre um projeto na Câmara que, segundo ele, transferiria aos parlamentares o poder de fazer indicações para agências reguladoras. Não era nada disso. Um projeto que acabara de sair do Senado estava exatamente na mão de Bolsonaro para sanção ou veto e não transferiria ao Legislativo essas indicações. Todas elas iriam seguir a cargo do presidente da República. Bolsonaro se fez de vítima, criou uma conspiração e ganhou o noticiário.

No segundo semestre de 2019, não havia mais nenhuma ilusão sobre um Bolsonaro controlável, tutelável ou coisa parecida. As crises e as declarações polêmicas surgiam aos montes e de formas inusitadas. Ainda naquele ano Bolsonaro chegou a fazer uma transmissão ao vivo nas redes sociais enquanto cortava o cabelo em horário de expediente dentro do Palácio do Planalto. Em outro dia atacou de uma só vez STF, imprensa, Igreja Católica e seu então partido, o PSL, em uma publicação em rede social. Nela, comparou-se a um leão sendo acossado por hienas. Cada hiena era identificada com um nome no vídeo divulgado pelo presidente. A Folha era uma delas.

Na vida real dos jornalistas, porém, Bolsonaro é quem fazia o papel de hiena em cima de nossa saúde mental. Crises diárias, volume extra de trabalho, rotina imprevisível, fake news, teorias conspiratórias, elogios à ditadura militar e tentativas de reescrever a história me atormentavam e me consumiam. Precisava absorver tudo aquilo e conduzir a equipe de uma forma serena e equilibrada. Bolsonaro parecia querer tirar a Folha do prumo. Um escorregão em alguma reportagem seria usado contra a gente. Vivíamos sob ataque, mas não era a nossa função reagir com a mesma moeda. Mais do que nunca não poderíamos errar. Todo enunciado de reportagem era debatido antes de ir ao ar. Versões e mais versões de um título iam e vinham, fazíamos ajustes e até enquetes internas antes do clique no botão “publicar”. A credibilidade do jornal e de seus jornalistas estava em jogo. Adotei a política do erro zero. E isso consome.

Com Bolsonaro tudo vinha com a carga extra do erro zero e do conteúdo muitas vezes inacreditável do que acontecia e era dito

Ao final de um dia normal de trabalho sob Bolsonaro a cabeça pulsava, tamanha a quantidade de decisões graúdas e sensíveis tomadas ao longo da jornada. Com Bolsonaro tudo vinha com a carga extra do erro zero e do conteúdo muitas vezes inacreditável do que acontecia e era dito. Cada e-mail, cada telefonema, cada mensagem de WhatsApp carregava uma ou mais decisões a serem tomadas. Decisão sobre rumos de reportagens (desde se iríamos fazê-las até que caminho tomar), reclamações de assessores de imprensa, apontamento de supostos erros nos textos por parte dos leitores, pedidos e cobranças da chefia interna, discussões muitas vezes acaloradas com outros departamentos do jornal, planejamento de coberturas especiais, atenção em todos os títulos de reportagem, pedidos de folga e de férias na equipe, recepção de autoridades em cafés ou almoços na Folha ou em restaurantes, conversas com repórteres e editores e o Manual da Redação da Folha debaixo do braço. Tudo deveria ser feito sem sair da linha editorial.

Produto

  • 1461 Dias na Trincheira
  • Eduardo Scolese
  • Autêntica
  • 256 páginas

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